Quarta-feira, 14 de Novembro de 2007

O Kipombo

 

 

            Estamos em Agosto de 1951 e os povos das sanzalas começam a descascar o café segundo o método tradicional no pirão. Em algumas sanzalas foram instalados, mais tarde, descascadores mecânicos accionados por motores de explosão que tornam a tarefa mil vezes mais rápida.

 

            O café, depois de apanhado no cafezal, chama-se cereja e é de cor verde. À medida que vai amadurecendo fica com tons variados, do amarelo ao vermelho vivo. A cereja é espalhada nos terreiros de modo a ser mexida três vezes ao dia para não fermentar e secar mais rapidamente. Conforme vai secando vai ficando com um tom castanho escuro, passando a designar-se por “mabuba”. Quando bem seca pode ser armazenada para posteriormente ser descascada ficando, finalmente, o grão de café.

 

             Em 51 a produção indígena era ainda processada nas sanzalas com o pirão pois os comerciantes só compravam café limpo, que era ensacado em  sacos de juta de 80 Kg. Todas as manhãs caravanas de indígenas, velhos, homens, mulheres e crianças transportam à cabeça sacos e quindas de café vindos de diversas sanzalas, espalhando-se pelas três casas comerciais conforme as suas simpatias.

 

             A estes agricultores eram distribuídas umas latas de leite vazias que serviam de medida para, cada um em sua casa, saber os “quilos” de café que trazia para venda. Essa lata, quando cheia de café, pesava 1200/1300 gramas, tendo sido baptizada por um comerciante dos lados do Toto, de nome Pombo, com o nome de Kipombo, como equivalente, em volume de café, ao Kilograma. Era esta a medida que estava generalizada por toda a região do café.

 

            Para o indígena o dinheiro pouco valor tinha, o que contava era o que levava de géneros para casa. Assim, se trouxessem 100 kipombos o comerciante reclamava se não pesassem pelo menos 120 Kg. Como o preço do kipombo era estabelecido em função do preço por quilo pago pelos exportadores em Luanda e, por vezes com a concordância das Autoridades Administrativas, o comerciante tinha no mínimo, para além da margem de revenda, uma margem de 200gramas por quilo de café. Esta margem era retribuída, em parte, ao vendedor , através do obrigatório mata-bicho que consistia em dar o mungo (sal) o vigié (peixe seco), a melele (tecido para o quimone e a tanga), o sabão, a missanga e o lenço.

             Tomando como exemplo a família do Velho Canzenza, nove mulheres e já não sei quantos filhos, o mata-bicho a dar era grande, mas a quantidade de café comprada, à volta de 150 quilos dava para que todas as mulheres e filhos de diversas idades voltassem contentes para a sanzala. O Velho era contemplado com uma garrafa de aguardente.

 

             Podemos dizer que o “marketing” do comerciante se baseava na “oferta” do mata-bicho, na sua qualidade e abundância. Por graça, refiro que uma das alcunhas de um comerciante era Mandafama, porque, depois de dar o mata-bicho dizia para o negro: -“ Manda fama!  Manda fama!” (espalha a fama do meu mata-bicho).

 

             Um dia, quando paguei ao Velho Cazenza, contando as notas de angolares perguntei-lhe:

 

-         Está certo?

-         Está certo, patrão!

-         Como é que Canzenza sabe que está certo se não sabe de contas?

-         Mas eu sabe, patrão...

 

            E vai-me explicar: tinham-se feito 7 pesagens de café; 7 sacos levando cada um 20 kipombos a 10 angolares o que totalizava 1400 angolares.

 

             Então o velho manda as mulheres porem lado a lado cada um dos sete sacos e diz-me:

 

-         Patrão, troca o quitar (dinheiro) em notas cama, cama (cem, cem).

 

            Assim fiz, e então o velho agarra nas notas e começa a pôr, em cima de cada saco, duas notas de cem. Fez o mesmo com todos os sacos e, quando chegou ao fim, lá estavam na mão as duas notas para cobrir o último saco.

-         Como vês patrão, está certo. Se faltasse dinheiro as notas não chegavam para cobrir todos os sacos. Chegaram, está certo!

 

Fiquei de boca aberta, eles bem sabiam quando estavam a ser roubados pelos comerciantes sem escrúpulos. 

 

            Feitas as contas o Velho diz para ir ao livro para pagar parte do débito. Então começa a descrição:

 

-         No dia tal foi o mala peixe.

-         Está certo patrão.

-         No dia tal isto e aquilo, e ele ia confirmando.

-         Soma patrão!

 

            Se totalizava, por exemplo, 1500 angolares ele dava mil e ficava a dever quinhentos, o que era bom sinal porque se pagasse tudo era por que deixaria de ser freguês. Depois ia gastar o resto do dinheiro nas compras mais necessárias, não esquecendo os milongo (remédios) para o lombriga, para o diarreia, para o dor de cabeça, o mata dores, e mais ao ouvido dizia-me:

            - Oh patrão arranja comigo milongo pró guso (remédio para a impotência), também havia!

 

            Mas, não se pense que os únicos explorados eram os indígenas. Os comerciantes eram, afinal, os intermediários entre estes e os grandes exportadores de Luanda, que enriqueciam à custa dos pequenos comerciantes que, sem possibilidades económicas, eram obrigados a vender o café que compravam numa semana, para arranjarem dinheiro para comprarem na semana seguinte. Os exportadores vão enchendo os grandes armazéns que têm em Luanda com café comprado a baixo preço na altura da colheita. Quando a oferta é muito superior à procura o comerciante do mato tem que se sujeitar à chantagem dos preços que lhe impõem e, também aos mil e um defeitos atribuídos na classificação do café: muito bago furado, bago miúdo, muita humidade, muitas impurezas. Todos nós sabemos que nos próximos três a quatro meses, quando os grandes barcos começarem a carregar os milhares de toneladas de café que os exportadores têm armazenadas, a situação inverte-se, a procura é maior que a oferta e os preços disparam. E, então o pequeno comerciante toma consciência de que quem mais lucrou foram os grandes exportadores que, em Luanda, sentados a uma secretária, exploram os homens do mato que no interior de Angola, em situações de isolamento, sem qualquer conforto, vão em convívio fraterno, porque não dizê-lo, com os africanos, criando um modus vivendi de interdependência.

publicado por Quimbanze às 22:37

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Terça-feira, 23 de Outubro de 2007

A repressão

Após o ataque ao Quitexe as populações das grandes sanzalas como o Catulo, Dambi Angola, Ambuíla e o Quitoque permaneceram nelas, pacificamente. Os carros circulavam no seu interior, sem qualquer hostilidade. Há como que uma pausa para avaliar a situação pois creio que, embora todos os pretos estejam ao corrente do que se passa , inicialmente, só uma pequena parte terá aderido à UPA e ao ataque ao Quitexe e às fazendas. A UPA só conseguiu alguns êxitos no primeiro dia dada a surpresa, pois se estivessem as fazendas alertadas, tudo tinha sido diferente. As autoridades estavam, afinal, a par do que iria acontecer, dia e hora, como posteriormente se veio a saber. Porque não alertaram as fazendas e as povoações da iminência do ataque? Porque deixaram morrer tantos brancos, mulheres e crianças sem saberem por que estavam a ser esquartejados à catanada?

 

         A UPA, à semelhança do que se passou no Congo Belga, confiou que os brancos, cheios de medo, abandonassem em fuga as suas terras, o que, por pouco não conseguiu. Só, talvez a presença  de largos milhares de contratados do Sul, agora todos classificados de Bailundos o terá evitado. Só na área do Posto do Quitexe haverá quatro ou cinco vezes mais Bailundos que toda a população local africana. Por variadas razões estão totalmente ao nosso lado e, assim evitam que a actividade cafeícula  paralise. E foi, graças ao valor económico do café e à permanência dos Bailundos nesta região, que a maioria das fazendas, entregues a gerentes e empregados brancos conseguiu manter-se em laboração. Estes, à noite, ainda ajudavam na defesa do Quitexe. Os comerciantes abalaram para Luanda; sem os povos das sanzalas nada mais os prendia aqui: não havia a quem vender, nem a quem comprar.

 A repressão que se segue é brutal. Não se procura uma alternativa. Entretanto, eu e o Martins Gonçalves propomos tentar entrar em contacto com as sanzalas, mas a nossa sugestão é liminarmente excluída: não havia ordem para isso.

   As sanzalas são metralhadas e incendiadas. Homens, mulheres, velhos e crianças iniciam a debandada; levam consigo os poucos haveres que conseguem reunir. O seu destino são as matas impenetráveis da Serra do Quimbinde, da Serra do Quitoque, do maciço da Serra do Cananga. Vão, quem sabe, à procura dos lugares dos seus antepassados, de onde, um dia, foram obrigados a sair, pela força, para se fixarem junto às estradas que correm no sopé das serras e dão acesso aos Postos Administrativos e, agora, às povoações da população branca e às sanzalas africanas.

  A morte de todos os pretos da região, sentenciada pela Pide, braço da repressão do governo, secundada pelos agentes das autoridades administrativas e outros mais sedentos de vingança, conseguiu, em poucos dias destruir o equilíbrio simbólico que existia entre o poder das autoridades portuguesas e o poder africano do sobas.

         O bom relacionamento dos comerciantes com os povos das sanzalas era fruto de uma actividade onde os interesses mútuos se cruzavam. Para o comerciante do mato é do bom relacionamento com os nativos que depende a sua própria sobrevivência e foi este equilíbrio estável que foi irremediavelmente perdido. E, assim, de maneira pouco política e irresponsável, as autoridades portuguesas entregaram à guarda da UPA, grupo armado de assassinos  ao serviço dos interesses americanos, os povos com quem convivemos durante centenas de anos. Este convívio nem sempre foi feito da melhor maneira, mas mais por culpa das autoridades que preferiam, em vez do respeito mútuo, incutir em terra alheia a submissão e o medo, esquecendo os valores do humanismo cristão que tanto apregoavam.

         Só muito mais tarde adoptaram a política da “psico”, tentando atrair as populações africanas a aldeamentos modelo guardados pelos “flechas” e visitados pelos altos governantes, como exemplo da convivência com os povos nativos.

 

Quitexe 61 - Uma Tragédia Anunciada, João Nogueira Garcia

publicado por Quimbanze às 19:33

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Sexta-feira, 19 de Outubro de 2007

O ataque à sanzala do Ambuíla

 

Como todos os dias, a parte da manhã passava-a na fazenda, almoçando lá alguns dias, outros, vindo almoçar ao Quitexe e ficando o resto do dia na povoação. O Alcindo e o Tavares haviam ido para Luanda, não sabendo se eles voltariam ao Quitexe, pois, para além do emprego, nada já os prendia ali. Em Luanda os deslocados tinham comida e dormida assegurados pelo Estado e, quem saiu do inferno do Quitexe, já não teria vontade de voltar. Assim, nesse dia da destruição da sanzala do Ambuíla, estou só, quando alguém me diz que o pide já seguira para lá com algumas tropas e civis. Iriam passar pela roça Quimbanze, que era a minha, e levar os contratados para ajudarem ao saque.

Fiquei preocupadíssimo, pois a roça limitava com a sanzala e com todas as lavras de café, mandioca e feijão que eram a base de toda a sobrevivência daqueles povos. Quando fui autorizado a demarcar a fazenda tive o cuidado de falar com o velho Cussecala, deixando livre a mata entre a fazenda e as lavras e sempre mantive relações de cordialidade com os nativos da Sanzala. Mais tarde esses terrenos seriam demarcados para outra fazenda cujo dono viria a pagar com a vida o preço dessa ocupação.

Mas, agora, seria feito o ataque e, com certeza, a minha roça, que com tanto sacrifício conseguira desbravar e plantar, seria a primeira a ser destruída como represália pelo saque ao Ambuíla. Vou ver o que se passa e vejo um avião sobrevoar a minha fazenda. De repente lança duas bombas que explodem já nas lavras da sanzala. Sigo para lá e constato que efectivamente são os meus contratados que, à ordem da Pide, estão a colaborar no ataque. Ainda pergunto ao Aspirante Administrativo se foi ele que deu ordens para isso, mas ele diz-me:
- Não senhor, não fui eu!

Quando entro na sanzala os contratados, nem todos, vêm carregados de cobertores, panelas, bicicletas e tudo o mais que podem carregar. Entretanto o fogo vai consumindo as cubatas, restando apenas paus fumegantes. Entre os destroços surge um soldado português carregando uma máquina de costura Singer de pedais. Alguém comenta o caso e o soldado exclama:
- Há quantos anos a minha mulher me anda a pedir uma máquina destas...

Quando parece acabada a operação eis que surge uma figura envolvida em panos, de carapinha toda branca, um velho (macolundo) descendo do ponto mais alto da sanzala. Quem será? Agora, já mais perto reconheço o meu velho amigo Cussecala que continua descendo ao encontro dos brancos. O velho Cussecala, pai do Pedro, meu antigo ajudante nas carrinhas, tem atrás de si uma história muito triste. Depois de ter sido soba enlouqueceu, com períodos de perigosidade, que obrigavam a que fosse preso a um bocado de tronco de árvore. Este tinha uma forcalha na extremidade, na qual metiam o pescoço do infeliz que assim ficava imobilizado. A outra ponta do pau ou era presa à porta da cubata ou, em caso de qualquer deslocação, levantada e transportada pelo acompanhante.

Nesse fim do dia, ele descia livre, pela última vez a avenida da sua velha sanzala. Ainda grito para um soldado que, entretanto, subira para a carroçaria de uma carrinha com uma mauzer apontada ao velho:

- Não o matem! Não o matem! Ele é um doido que há muito enlouqueceu!

Do cano da espingarda uma bala parte direitinha ao crânio do Velho Cussecala. Horrorizado aproximo-me e, da cabeça esfacelada, vejo ainda à sua volta bocados de massa encefálica espalhados pelo chão.

Agora é o regresso dos heróis e eu vou para a fazenda onde começam a chegar os contratados com os despojos do saque. Alguns sem nada, outros carregados com tudo o que puderam trazer. O cabo do grupo é de todos o que mais transporta pois a bicicleta que acaba de adquirir vem
carregada. Espero que todos cheguem ao acampamento e, de seguida, dou ordem aos cabos para que formem no terreiro. Ordeno, então, para que todos os haveres que tinham sido roubados na sanzala sejam transportados para fora da fazenda pois não permito que nada roubado aqui permaneça. Têm o prazo até amanhã de manhã para o fazerem.

Parti com a sensação de que, no dia seguinte, só encontraria destroços fumegantes das casas, dos armazéns, dos acampamentos, dos tractores, enfim de tudo o que representa uma vida de trabalho e sofrimento.

Volto ao Quitexe e preparo-me para jantar, como de costume, no restaurante do Pacheco. Depois irei saber a hora para que estou escalado de guarda ao restaurante, agora transformado em dormitório e defendido toda a noite. Fazem-se turnos de uma hora , desde as 10 h da noite até às 6 da manhã. A vigia é feita no terraço que serve de pala à varanda do restaurante. Ali, durante toda a noite, dois homens, por turno, esperam de peito descoberto, o mais pequeno sinal de ataque para darem o alarme e abrirem fogo. Rara é a noite em que o alerta não soe, quase sempre vindo da Administração, onde estão alguns tropas e civis. O grito de alerta, normalmente seguido de disparos, é uma coisa terrível pois as pessoas que estão, por vezes, no primeiro sono entram em pânico. Uns correm descalços, outros em cuecas (que era o meu caso), outros tremem, outros choram, mas todos vão ocupar os seus lugares e ali ficam esperando o ataque. Passada meia hora chega-se à conclusão que, como sempre tem acontecido, é alarme falso.

Nesta noite vou estar de vigília, fazendo companhia aos companheiros que, de hora a hora, se vão revezando. Sentado num caixote na pala da varanda (de onde, de dia, se avistam os armazéns da minha fazenda) estou ali expectante, esperando que algum clarão de fogo rompa a noite como sinal do incêndio da roça. Até às seis horas da manhã nada acontece. Termina a vigia, o pessoal que dormiu na camarata improvisada começa a aparecer para tomar o café. Para mim esta terá sido a noite mais longa de todas as noites.

Vivendo ainda o sucedido no dia anterior, vou para a fazenda saber a reacção dos contratados Bailundos aos acontecimentos. Sou informado de que está tudo calmo e que a minha ordem, para que todos os utensílios roubados no Ambuíla fossem postos fora da fazenda foi cumprida. O Augusto segredou-me que eles tinham reunido todos os bens roubados e os tinham ido pôr junto à minha casa; de noite alguém os havia levado.

Não fiz mais perguntas, mas calculo que os seus donos os vieram reaver, levando-os para as matas, onde agora se escondiam.

publicado por Quimbanze às 21:45

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Quarta-feira, 22 de Agosto de 2007

A PIDE

Mas só estes factos não seriam suficientes para esta detenção. Deveria ter havido denúncia por parte de alguém...
Volto ao Quitexe onde o convívio social dia a dia se degrada. Para mim resta apenas o Dr. Assoreira como amigo de confiança e é com ele (que, como eu, se recusa a abandonar a fazenda e o Quitexe) que confidencio as minhas amarguras que são grandes.
Assim dei-lhe conhecimento de que havia sido detido pela Pide e estava agora muito preocupado com a situação do meu irmão Alfredo, em Luanda. O Dr. Assoreira já sabia da minha detenção e até havia comentado, junto das autoridades, que eu estava a ser vítima de uma acusação sem qualquer fundamento. Esta acusação partira de comerciantes do Quitexe que tinham inveja do meu relacionamento com todos os indígenas, pois como comerciante eu comprava sozinho mais café que todos eles juntos.
Mais tarde vim a saber o nome dos três comerciantes que haviam feito a queixa à Pide.

Dei conhecimento, também, ao Dr. Assoreira de outra situação que me afligia. Temia, que no meio das acusações, a Pide fosse à casa do Quitexe e encontrasse lá, no antigo quarto do Romão, as caixas de pólvora Bracarena e as caixas de balas que o Romão e o Bastos utilizavam nas caçadas. Da pólvora, já ele tinha conhecimento pois ele próprio havia levado uma parte das caixas para fazer explodir na pedreira e arranjar pedra para os alicerces dos acampamentos e armazéns que andava a construir.
- Não te preocupes, eu sei disso, e se houver alguma coisa , eu esclareço tudo.

Mas, para evitar confusões, e não ser apanhado em teias ardilosas, resolvi desfazer-me de tudo. As balas fui-as deixar numa mesa onde um cabo do exército estava a receber todo o género de cartuxos ou balas que os civis tivessem em casa e não fossem necessários para a sua defesa. Sem me identificar, aproveitei a ausência momentânea do cabo e lá as deixei. Faltava agora a pólvora, que resolvo levar para a casa de banho; aí, caixa a caixa, vou-as despejando pela pia abaixo com a ajuda de baldes de água. E as caixas, que de lado eram de cartão , mas com o fundo e o cimo em lata? Com o pé fui esmagando uma a uma até que ficassem bem espalmadas. De seguida, levanto a tampa da fossa e para lá as atiro. Senti um grande alívio, pois se a Pide viesse já não encontrava motivo para novas falsas acusações e os “turras” da UPA, caso entrassem no Quitexe, também não encontrariam pólvora para carregar os canhangulos.
Mas, atenção, havia, ainda, uma série de livros do meu irmão, proibidos pela censura. Arranjei um alçapão e escondi-os no vão de telhado. Tudo isto em surdina, com medo de ser detectado, o que me causava uma ansiedade e um stresse inimagináveis.
Hoje, quando tinha o jipe parado junto ao bar do Pacheco, o bandido do traidor da pide vem dizer-me que o vai levar:
- Foi mobilizado pela Pide!
E lá arranca a caminho do Uíge. Agora tenho as carrinhas Ford e Chevrolet para me deslocar à fazenda. Mas chegando ao cruzamento do Talambanza tenho que meter correntes pois as rodas patinam na lama e a carrinha não avança. De volta, a operação inversa já que a estrada para o Quitexe é asfaltada e não se pode andar com correntes. Andar nas picadas da fazenda é impossível: o lamaçal é grande e só mesmo de jipe. Indignado vocifero:
- Filho da puta do pide!
E, assim, durante dias, só à distância avisto o meu jipe que o pide manobra como sendo seu. Certo dia vejo a viatura parada junto do Chefe do Posto e do Tenente (Comandante Militar do Quitexe) que estão em conversa com o pide ladrão. Consigo aproximar- me, sem dar nas vistas, e chegado junto aos três homens digo-lhes ao que venho, apontando para o pide:
- Este senhor apoderou-se, há já muitos dias, desta viatura dizendo-me que ela havia sido mobilizada pela Pide. Durante todo este tempo não recebi nenhuma intimação por escrito dessa decisão e como não a roubei, quero que a situação fique agora esclarecida.
O pide não me deixou acabar de falar, entregou-me as chaves do jipe e, sem qualquer comentário, afastou-se.
Eu andava num estado tal que já nem medo da Pide tinha, embora este homenzinho asqueroso fosse quem mandava no Quitexe. Tinha efectivamente um poder que se sobrepunha a todos os outros , incluindo o militar. Era ele que comandava toda a repressão e eu estava condenado a cruzar-me com ele a toda a hora. Assim, resolve um dia, com autorização superior, incendiar a sanzala do Ambuíla que confrontava com a minha fazenda.

publicado por Quimbanze às 20:29

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Sexta-feira, 20 de Julho de 2007

GENERAL HUMBERTO DELGADO

Este ódio da Pide tinha motivações mais antigas:

 

 

Corre o ano de 1958 e há eleições para a Presidência da República. Três concorrentes: Almirante Américo Tomaz, Dr. Arlindo Vicente e General Humberto Delgado. O Dr. Arlindo Vicente desiste a favor do General que congrega o apoio de toda a oposição ao regime.

 

 Eu e os meus irmãos, descendentes de republicanos e democratas bem cedo abraçamos os ideais da liberdade e democracia. No entanto, o espaço de manobra para divulgar estes ideais era estreito e repleto de ameaças de toda a espécie. Havia que aproveitar as pequenas aberturas do regime  no período eleitoral, embora a derrota já fosse anunciada pois os arautos do fascismo proclamavam publicamente não sair nem a votos nem a tiros. Mesmo assim o meu irmão Alfredo e eu, conscientes desses perigos, recebemos, em nome do General Humberto Delgado uma procuração para o representar no acto eleitoral no Posto Administrativo do Quitexe. Procuração esta subestabelecida por um advogado de Luanda, Dr. Lima.

Naquele ano de 1958 havia no Quitexe uma relação fraternal entre as pessoas brancas. Todos se davam bem e a política não era o assunto que mais as motivava; os temas de conversa eram os problemas locais como o preço do café, as estradas esburacadas, a chuva que não vem, o Chefe do Posto, o Administrador, o Governador que não aparece, etc, etc. Aliás os Portugueses já estavam habituados a não falar de política, pois só nas eleições havia uma ligeira abertura, mais para efeitos de propaganda exterior do que propriamente  para os chamados oposicionistas que viviam espartilhados entre o poder do Estado e o terror da Pide.

 

As eleições aproximam-se e o Chefe do Posto, o Barreiros, tem conhecimento que o meu irmão Alfredo, ele mais do que eu, encabeça a oposição, e que nos preparamos para fiscalizar a mesa de voto. O Chefe do Posto entra em pânico, pois prevê que se as eleições não forem uma chapelada de 99% a sua permanência no Quitexe estará em risco. Para ele, pessoalmente, diz que tanto lhe faz que ganhe o General como o Almirante. Então, somos pressionados para desistirmos da fiscalização oficial das eleições. Ele até nem se importa que nós os dois votemos no General... Nós contestamos dizendo que entre 15 a 20 eleitores vão votar Humberto Delgado. Ele não acredita e até é feita uma aposta de uma caixa de Whisky: se nós tivéssemos mais de 10 votos ele perdia a caixa, caso contrário, pagávamos nós. Nestas terras não é  de boa política dizer não ao poder administrativo, mas nós éramos amigos e ele, sobretudo, o que queria era não ser transferido para outro lugar.

 

            Entretanto, eu já havia colocado um grande póster do General na parede da casa. O póster era encimado com as palavras – “General Humberto Delgado candidato à Presidência da República”, seguia-se a sua fotografia com a farda militar de general da Força Aérea e, logo a seguir, em letras bem grandes o slogan:

 

     EM NOME DA PÁTRIA ME PEDIRAM, EM NOME DA PÁTRIA ACEITEI

 

Este cartaz manteve-se afixado para lá das eleições, até que o sol e a chuva o destruíram. Era a presença do farol da luta pela democracia bem no interior de Angola.

 

            As eleições lá se realizaram: o Pinto Antunes, da Firma Matos Vaz era o presidente da mesa e foi acordado que só contavam os votos dos eleitores que pessoalmente se apresentassem à votação. Não foi permitida a chapelada e, em vez dos 105 votos previsíveis para o Almirante Tomás (tantos quanto os eleitores inscritos), foram escrutinados 60 votos, 40 para o Almirante e 20 para o General. As listas, por imposição do Dr. Assoreira foram queimadas para evitar que, através das impressões digitais, se pudesse vir a saber o sentido de cada votante.

 

Moral da história: perdemos as eleições, ganhamos a aposta e ficamos marcados pelos governantes que daí para diante só nos criaram entraves. A Pide, essa, nunca mais nos perdoou...

 

O Chefe do Posto Manuel da Silva Barreiros, felizmente, não foi transferido.

publicado por Quimbanze às 19:54

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Quinta-feira, 19 de Julho de 2007

Detido pela Pide

           

Hoje, num dia indeterminado de Março, vou ao Uíge  e entro no bar do hotel que está cheio de gente. A certa altura vejo o pide-mor do Quitexe, mais duas pessoas a observarem-me. Terá dito aos outros :

         -         É aquele!

Logo se dirigem para mim, perguntando:

 

- É o João Nogueira Garcia do Quitexe?

- Sou.

- Então acompanhe-nos. Somos agentes da Pide.

 

Sou metido entre os dois, sem saber qual o meu destino nem o motivo porque era detido. No caminho ainda me perguntam se conheço o catequista do Bumbe. Digo que sim. Afinal, o senhor é uma pessoa muito conhecida no Quitexe! E eu sou um dos fundadores da povoação. (Quando passava pelo Bumbe, normalmente pedia um copo de água ao catequista que trazia sempre dois copos e fazia questão de beber primeiro para demonstrar que a bebida não estava envenenada.  Deixa-te disso! Se não tivesse confiança em ti não te pedia água, dizia-lhe.) A carrinha aproxima-se, agora, dum largo. Portão fortemente guardado por soldados de capacetes de aço, cartucheiras de balas ao peito e espingardas de guerra. Estou, afinal no Quartel Militar do Uíge. Lá dentro parece reinar uma certa confusão entre os soldados: ordens para todos os lados. Já no interior, acompanhado pelos pides, sigo junto a uma parede da parada.

 

-         Espere aqui, até o chamarmos!

 

E entram por uma porta. E ali fiquei esperando. Cansado que andava de noites e noites sem dormir, sento-me no chão. Quando já dormitava, ouço uma voz dizer-me:

 

-         Levante-se lá , o que está aqui a fazer?

 

Vi, então, um tenente empunhando um sabre que me apontava conforme me ia levantando. Já de pé, e com o sabre apontado ao pescoço, miro o tenente dos pés à cabeça e, olhos nos olhos, digo-lhe:

 

-         Estou aqui detido às ordens da Pide, que me mandaram esperar.

 

O tenente, vendo que não retirava os olhos dele, começa a gritar para os soldados:

 

-         Qual foi o sacana que deixou o sabre da espingarda aqui no chão?

 

Deu meia volta, como que envergonhado, sem dizer mais palavra e desapareceu entre os soldados. Tinha perdido o sono e o cansaço, não voltei a sentar-me e esperei que os pides aparecessem, o que aconteceu uma meia hora mais tarde. Vêm dizer-me que, afinal, não era a mim que procuravam mas sim o meu irmão Alfredo. Disse-lhes que ele estava em Luanda. Abandonei o Quartel temendo, a qualquer momento, uma bala pelas costas.

 

Agora a minha preocupação era avisar o meu irmão que a Pide o procurava. Consegui telefonar ao meu primo Luís Garcia que se encarregou de o alertar.

publicado por Quimbanze às 19:22

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Sábado, 14 de Julho de 2007

Dia 17

Dia 17

O Governo ordena uma ponte aérea e começa a evacuação das mulheres e crianças do norte de Angola. E eu regresso ao Quitexe preocupado com o que se terá passado na fazenda e com a atitude que tenho que tomar perante a ameaça à minha vida por parte dos brancos. Tinha que ser duro.

 

            No percurso, perto da fazenda do Matos Vaz um casal de nativos, ela com um bebé atado às costas, caminha pela berma da estrada. De uma carrinha alguém dispara e mata o casal. Eu, que vou noutra carrinha, mais atrás, vejo horrorizado o bebé rastejando por cima do corpo da mãe já morta. O motorista não para e ninguém grita... A morte sobrepõe-se à vida!

Oh maldição do tempo em que vivemos! Onde está Deus que não vê isto?

 

            O Quitexe está cheio de gente que, vinda dos Dembos, das povoações e das fazendas ali procurava abrigo. A carrinha parou junto a um aglomerado de comerciantes do Quitexe. Então exclamei:

 

-         Eu não fugi e, por isso, aqui estou! Vocês preferiram mandar as mulheres e os filhos para o Uíge sem a preocupação de saberem quem as defenderia, no caso do ataque anunciado ao Uíge. Fui eu e um jornalista do Jornal do Uíge que organizámos a defesa do hotel! Foi com catanas, que fui buscar à loja do Ferreira Lima, que as mulheres se barricaram nos quartos! Arranjamos um avião que levou para lugar seguro a minha e as vossas famílias! Estou muito zangado. Para mim a defesa da família é um direito primário, mas sagrado e, agora que ela está em lugar seguro, vamos ver quem está para ficar!

 

Cabeças baixas engoliram em seco.

 

            Na fazenda, o ataque tinha-se resumido a um grupo do Ambuíla, que queria tomar conta da roça. Formaram o pessoal e disseram que, de agora em diante, eles é que mandavam pois os brancos ou foram mortos ou fugiram. No dia seguinte, logo de manhã, volto à fazenda e o grupo do Ambuíla lá estava para começar a dar ordens. Então, um contratado avista o jipe  e diz:

-         Lá vem o patrão Garcia!

 

Os ocupantes, logo que o ouviram, começaram a fugir pelo meio do capim para eu não os reconhecer.

 

A noite de 17 para 18 é passada na casa do Chefe do Posto entretanto transformada na fortificação principal. Um grupo de 9 soldados africanos, 2 cabos e um tenente brancos das forças territoriais vêm em nossa defesa. Três metralhadoras pesadas Brem são colocadas na retaguarda  da casa prontas a defenderem o depósito da água e o gerador da electricidade e “varrerem” o capinzal que cerca a povoação, em caso de ataque. Só o Chefe do Posto, o Tenente e o Médico (Dr. Assoreira)  têm quarto para descansarem, naqueles dias. Os soldados e os civis, deitados no chão, embrulhados num cobertor, esperam, dormindo acordados, que a manhã afaste o medo da noite. Os soldados africanos revezam-se dia e noite agarrados às metralhadoras. Parecem nunca terem sono, disciplinados. São homens do Sul, talvez Cuanhamas, soldados de confiança.

 

            De Luanda recebo a notícia de que a Aline e os filhos seguiram para Portugal; fiquei surpreendido pois a situação talvez não exigisse uma partida tão rápida, mas o meu irmão Alfredo aproveitou a vinda de um avião a Luanda com tropas pára-quedistas, levando de regresso passageiros.

 

            Foi a primeira separação. Conformado e sabendo que seriam bem recebidos no seio da família, lá vou doravante transportar sozinho uma pesada cruz. Todos os dias vou à fazenda e por lá permaneço algumas horas. Uma parte dos bailundos vai de manhã para a capina do café, enquanto outros, vigilantes, guardam a fazenda.

 

 O Quitexe, onde nos primeiros dias se juntou muita gente, vai ficando cada vez menos ocupado. Com diversos argumentos , entre os quais irem ver as mulheres e os filhos a Luanda os homens também vão saindo. Mas a vigilância aumenta, temendo-se novo ataque.

 

Hoje, no jipe a caminho da fazenda com o Alcindo, sou surpreendido por um grupo de uns 50 pretos no meio da estrada. Por cautela parei a uma distância de cerca de 20 metros e perguntei:

 

-         Quem são e donde vêm?

 

Só autorizei que um dos miúdos, integrado no grupo avançasse, trazendo nas mãos uns papéis. Sempre de pistola na mão vejo os papéis e verifico que é uma guia de marcha de contratados do sul da fazenda Vieira de Matos situada a uns 30Km do Quitexe. Fugiram porque o gerente e os outros brancos os abandonaram.  Perante a situação digo-lhes para saírem da estrada e acamparem no capim.

 

 - Vou à minha fazenda, ali em frente e quando voltar para o Quitexe apresento a vossa situação às autoridades. Não saiam daqui! 

De volta lá estavam e eu prometi-lhes, de novo, trazer notícias. Chegado ao Quitexe exponho a situação ao Comando Civil e Militar. De imediato me respondem:

 

- Nenhum grupo de pretos se pode aproximar da povoação. Se o fizerem serão mortos.

- Então o que vamos fazer com eles?

- Faça como puder, mas aqui não entram!

Sugeri que, se eles autorizassem, os levava para a fazenda.

-         Se assume a responsabilidade pode fazê-lo.

 

Assim fiquei com mais cinquenta e tal pessoas para alimentar. Durante três meses ninguém procurou saber se os homens eram vivos ou mortos!

 

Agora, sem o Tavares nem o Alcindo que foram para Luanda ver as  famílias, encontro-me sozinho. Tento encontrar alguém que vá comigo à fazenda. Quando isso acontece, lá comemos um churrasco feito pelo cozinheiro. Outros dias há que vou sozinho. Fui escalado para dia sim, dia não, com outros colonos, patrulharmos as ruas do Quitexe; das dez horas da noite até às seis da manhã em cima de uma camioneta. Em caso de ataque seríamos as primeiras vítimas.

 

Ter como missão defender, de dia, as fazendas e, à noite, fazer guarda e dormir (quando é o caso) em improvisadas camas é doloroso; mas um homem acaba por sobreviver a tudo (menos à morte). Os constantes boatos lançados diariamente – hoje atacam ali; há mortos em tal parte; consta que há concentração de turras para atacar o Quitexe – criam uma situação de inquietação permanente.

publicado por Quimbanze às 16:03

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Quinta-feira, 5 de Julho de 2007

Dia 16

Começa a caça ao preto, enquanto vão chegando notícias de mortes por todo o norte de Angola.


Eu, o Ramos e o Armindo concluímos que, dada a impossibilidade de as famílias voltarem para o Quitexe e para as fazendas, o melhor seria requisitar um avião e evacuá-las para Luanda, onde estava tudo calmo. Feitas as diligências junto da DTA o avião só viria ao Uíge se nós nos responsabilizássemos pelo pagamento. Eu e o Ramos assumimos a responsabilidade, com a garantia de que o avião chegaria ao Uíge por volta das três da tarde. Não havia sacos nem malas pois as mulheres e crianças embarcavam com a roupa que traziam no corpo. A pedido do Ramos vou para o aeroporto controlar as entradas no avião para que só mulheres e crianças embarquem.

Enquanto se preparam as carrinhas para levar as pessoas escoltadas para o aeroporto, aparece o Abel Poço, completamente destroçado, pedindo-me para o acompanhar no funeral do irmão José Poço que tinha sido morto na sua fazenda. Estava sozinho e queria que alguém conhecido o acompanhasse. Gostaria de ter ido mas não podia: em breve chegaria o avião e eu queria dar talvez o último adeus à Aline e aos quatro filhos. Já no aeroporto e com o avião na pista os pilotos tomam conhecimento do que se está a passar e ficam muito surpreendidos pois em Luanda não há conhecimento de nada. E prometem que, se houver condições, voltarão antes do anoitecer. Mas as condições atmosféricas não o permitiram.

 Na hora do embarque aparece um casal para apanhar boleia para Luanda. Disse-lhes que o avião havia sido fretado por nós e só permitiria que a mulher embarcasse, e ela lá entrou. Mas o marido, já em tom agressivo insistia em entrar pois a mulher sofria do coração e não podia ir sozinha. Digo-lhe que também eu tinha a bordo a mulher e quatro filhos e era com o coração destroçado que os via partir. Agora não é hora para os homens partirem. Já com o avião apinhado de gente, e prestes a levantar voo, vou-me afastando da pista. O avião lá levantou, mas o homem que, à viva força, queria entrar não o vi mais. Pergunto ao polícia:

 

- O homem?...

- Conseguiu embarcar e lá vai a guardar a mulher!

 

Agora, que o avião partiu, a minha preocupação é regressar ao Quitexe. Não tenho transporte pois vim à boleia. Procuro saber se alguém vai. No Ricardo Jorge, que tem loja e fazenda no Quitexe, informam-me que ao cair da noite tem uma carrinha que vai e eu posso aproveitar. Entretanto, alguém que acabou de chegar do Quitexe conta-me que alguns brancos dizem não se responsabilizarem pela minha vida se lá voltar. Que eu andava feito com os pretos e que sabia o que ia acontecer. Ora quando me despedi da família, no aeroporto, despedi-me com a sensação de que nunca mais os veria, pois estava decidido a não abandonar a fazenda. Quem não deve não teme e parti na carrinha. Quando tínhamos andado uns 20 km, uma carrinha vinda do Quitexe, a grande velocidade e sempre a apitar, para junto a nós.

 

-          Não vão para o Quitexe! A fazenda do Garcia está a ser atacada!

 

Todos nos interrogamos :

-          Que fazer? Seguir ou voltar? 

 

Apenas eu queria seguir, visto ser a minha fazenda. Mas não os demovi e voltamos para o Uíge.

 

Como é possível que tanta tragédia aconteça num só dia? Mas era apenas o começo
publicado por Quimbanze às 21:30

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Terça-feira, 26 de Junho de 2007

DIA 15

 O Tavares toca a sineta ( a mola contra o semi-eixo) e quando saio de casa já só o vejo ir com o pessoal a caminho da plantação. Sou então surpreendido com um espectáculo terrível. Junto à cozinha, subindo já pela parede da casa, milhões e milhões de formigas quissondo avançam continuamente pela parede. Formam um rolo ondulante que devora tudo à sua passagem. Tento destruí-las mas logo desisto, pois quantas mais mato mais aparecem. Digo ao Augusto para ir à cerâmica, na carrinha, buscar o maçarico para tentar queimá-las. Entretanto arranjo uns trapos velhos envolvidos em gasóleo a arder na ponta de um pau e lá as vou queimando. Com a chegada do Augusto conseguimos, com o fogo, dar cabo das formigas assassinas, que em pouco tempo devoram qualquer animal. A Alíne e os miúdos andam de volta das galinhas, dos pintos e dos pombos a catar as formigas que já tinham atacado o galinheiro.

 

            Da casa avistamos a estrada que, vinda do Uíge(2) ou do Quitexe, dá acesso à fazenda continuando depois para S. José do Encoje e Ambuíla, percorrendo dezenas e dezenas de quilómetros entre a serra do Cananga, de um lado, e as serras do Quimbinda e do Mongage do outro. Vimos, então, um jipe que parece vir apressado. Virá para aqui ou seguirá para as fazendas mais afastadas? Afinal vinha para aqui. Quem seria? Era o Chefe do Posto Nascimento Rodrigues ao volante. No banco traseiro o Abílio Guerra e o Jaime Rei. Eram afinal os três membros da Junta Local. Muito preocupados, o Chefe do Posto chamou-me de lado e disse-me que de noite tinha havido sarilho na fazenda do Zalala e que o gerente tinha conseguido fugir e ir para o Uíge chamar a tropa e que constava que muitos pretos haviam fugido da fazenda. Se entretanto aparecessem por aqui devia prendê-los. – “Chefe, eu prendê-los como?”A resposta foi dizerem-me que iam ver o que se estava a passar nas fazendas e que depois voltavam a passar por cá. Lá partiram e eu desloquei-me para o Quitexe passando pela sanzala Talambanza onde iria buscar o carpinteiro Jorge Panzo. A sanzala, que ficava no cruzamento da estrada para o Uíge com a da fazenda, estava deserta. Nem Jorge, nem meio Jorge! Mas um capita vem apressado dizer-me:

 

-          Não vá para o Quitexe pois há por lá muitos mortos! O Dr. “Talambaza” (Almeida Santos) acaba de passar para tentar chegar ao Uíge e trazer a polícia!

 

De imediato dou meia volta ao jipe e corro a grande velocidade para casa passando pela fazenda do Armindo Lenita onde ele, a mulher e os dois filhos podem correr perigo. Chegado à fazenda chamo a Aline e digo-lhe para preparar cobertores pois podemos ter necessidade de fugir para a mata.

 

Chamo o cozinheiro do pessoal e entrego-lhe um bilhete para levar rapidamente ao Tavares. Sem pormenores, escrevo-lhe a dizer para deixar o pessoal e vir imediatamente. Chamo também o Augusto para ir à Cerâmica e trazer o Alcindo:

 

–        Que deixe tudo e venha já!

 

De volta o Chefe do Posto, o Abílio Guerra e o Jaime Rei vêm horrorizados dizendo que há mortos nas fazendas. Eu tenho que lhes dizer que no Quitexe também há mortos; os três tinham lá deixado as mulheres e os filhos e lá partiram, como loucos, sem saberem o que iriam encontrar.

 

As mulheres e os miúdos estão reunidos em minha casa. Entretanto chega uma carrinha com o guarda-fiscal mais um soldado, armados de metralhadoras. Vêm para nos buscar rapidamente. Disse-lhe que não abandonava a fazenda enquanto os meus empregados, o Alcindo e o Tavares não chegassem. Ele estava com pressa e partiu.

 

Agora é o Antunes, o homem do talho, que aparece com a Dona Alice e os dois filhos a abrigar-se na fazenda. Entretanto o Alcindo e o Tavares chegaram e era a altura de decidirmos o que fazer... O Tavares manda chamar os cozinheiros e damos-lhes ordens para que todo o pessoal regresse ao acampamento. Foi-lhes entregue a ração para três dias: fuba, peixe seco, óleo de palma e feijão. Ninguém ia trabalhar e ficavam de guarda à fazenda. Nós tínhamos resolvido aproximarmo-nos do Quitexe parando na fazenda do Armindo Lenita. De lá avistávamos a estrada que liga o Uíge ao Quitexe. Dentro de pouco tempo vimos que dois carros circulavam no sentido do Quitexe que ficava a uns três quilómetros. Resolvemos avançar, também, e entrar na povoação onde alguns cadáveres estavam ainda na berma das ruas. Tento desviar o olhar dos miúdos da tragédia, mas não o consegui totalmente pois na noite seguinte a minha Adrianita, com sete anos não conseguia dormir, recordando a visão dos mortos e, muito agarrada à Mãe, perguntando o que se estava a passar.

Ao Quitexe começam a afluir as mulheres e crianças brancas de todas as fazendas. Ninguém sabe se será seguro permanecerem lá sozinhas ou, sequer, como vai evoluir a situação. Na parte da tarde vem uma camioneta do Uíge para evacuar as mulheres e crianças para o hotel do Uíge. Mas consta que esta cidade será atacada por milhares de pretos nessa noite (de 15 para 16). Decido que o meu dever acima de tudo é defender a família e deixo o Quitexe rumo ao Uíge. Os rumores do ataque da UPA são cada vez mais persistentes. As ruas estão desertas e na rua principal apenas um civil, que deve ser da Pide, patrulha, rua abaixo, rua acima, com uma pistola-metralhadora e cartucheiras cheias de balas. No hotel a confusão e ansiedade  pelo que pode acontecer é grande. Não há ninguém para defender o hotel. Um redactor do Jornal do Uíge, lá hospedado, apercebe-se do drama e telefona para o quartel da tropa relatando a situação em que se encontravam dezenas e  dezenas de mulheres e crianças, totalmente desamparadas e sem protecção. A resposta foi pronta:

 

-       Desenrasquem-se como puderem pois em caso de ataque nem tenho tropa suficiente para defender o paiol!

Eu tinha comigo uma pistola 365 com 10 balas; eu que na minha vida só tinha disparado ao alvo armas de pressão de ar! E se fosse preciso abrir fogo?...

A situação era aflitiva pois os homens tinham ficado no Quitexe. Esgotada a possibilidade de defesa, vou à loja do Ferreira Lima buscar uma dezena de catanas que distribuo pelos quartos. Com os poucos homens organiza-se uma defesa simbólica com duas pistolitas e duas catanas. Três pessoas ficam na porta principal. Eu fui para as traseiras defender a porta de acesso às instalações. A noite vai avançando. Atacarão, não atacarão? O silêncio é aterrador. Vão chegando informações contraditórias: já estão a atacar! Já há mortos! Serão boatos? A avenida está silenciosa, apenas o pide continua a andar para cima e para baixo. Agora chega a informação que o ataque vai começar à meia-noite. Cresce a ansiedade. Nada é dito para os quartos, agora fechados, onde as mulheres, em caso de ataque apenas têm as catanas para se defenderem. A meia-noite aproxima-se e então começo a ver e ouvir vultos que se aproximam, subindo a rua das traseiras do hotel.

 

–        MATA! MATA! UPA! UPA!

Do lugar onde estou vejo passar a turba, mas não há nenhum sinal de quererem atacar o hotel. Também já passaram junto ao quartel da Polícia e do Palácio do Governador e só se ouve o – MATA! MATA! UPA! UPA! Não há tiros. Só mais tarde para os lados do Bairro Montanha Pinto começa grande tiroteio que vai diminuindo conforme a noite avança. Corre a notícia de que, afinal, as grandes sanzalas em redor do Uíge não colaboraram no ataque. O grupo que avançou era o que havia passado nas traseiras do hotel e foi disperso.

 

 

 

publicado por Quimbanze às 21:42

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Sábado, 23 de Junho de 2007

Dia 14

Todo o pessoal anda no tonga, na capina do café para os lados do Zongo. Apenas os cozinheiros que regressam de levar o funje ao pessoal permanecem no acampamento. Nas casas e no terreiro os meus filhos e a Constança brincam, visto estarem de férias. A Aline, a Laura e a D. Maria, cada uma na sua casa andam ocupadas nas lides domésticas. Eu e o Augusto vamos andar todo o dia com as camionetas Fargo e White a transportar lenha para a cerâmica. No fim do almoço o criado vem dizer-me que anda um preto desconhecido a passear no terreiro. Vou ver o que se passa e de quem se trata. Era o Laurindo do Ambuíla que me diz que precisava de falar com o Augusto. Retorqui-lhe que o Augusto andava na plantação com a camioneta e que hoje era dia de trabalho.

 

            O Laurindo que era filho do velho Mainga, velho amigo que eu muito respeitava, dava a ideia de que teria alguma coisa para me dizer. Falou dos Velhos do Ambuíla, do pai, do Velho Mafuta, do Velho Lussecala e outros que gostavam muito de mim, do patrão “Gracia”, que era bom branco. O Laurindo queria falar mas eu, que estava com pressa, fui-lhe dizendo que estava atrasado e que tinha pessoal à espera para carregar a camioneta. Entretanto aparece a Aline e o Laurindo cumprimenta-a muito respeitosamente.

A sanzala do Laurindo, o Ambuíla, ficava no limite da minha fazenda, a escassos dois mil metros. Com todos os habitantes dessa sanzala eu tinha boas relações, éramos bons vizinhos. Depois de beber um copo de vinho e aceitar um cigarro o Laurindo lá partiu sem falar com o Augusto. E, ainda hoje, eu penso que ele seria portador de alguma mensagem dos velhos em relação ao que viria a acontecer no dia seguinte.

À semelhança de todos os dias, antes do deitar, tentei ouvir a Radio Brazaville mas, nessa noite não consegui. E assim terminou o dia 14 de Março de 1961.

 

publicado por Quimbanze às 17:32

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