Quarta-feira, 30 de Maio de 2007

4 de Fevereiro de 1961

 

À semelhança de todos os dias, mal despontam os primeiros alvores da madrugada, o Tavares acorda o pessoal, batendo com o bocado de mola da carrinha num semi-eixo partido pendurado num galho duma messumba. Ao som das pancadas o pessoal do acampamento começa a formar a fim de serem distribuídas as tarefas para o dia de trabalho.

 

 Nesse dia eu tinha o jipe preparado para ir a Camabatela levar mantimentos para os três pastores que estavam de guarda a uma manada de gado bovino (cem cabeças) numa demarcação de terrenos que tínhamos lá perto, com uma área a perder de vista. Parti, então, ao amanhecer, deixando a mulher e os filhos em casa esperando a hora da ida para a escola.

 Acompanhado do Augusto sigo a caminho de Camabatela passando primeiro pela povoação e Posto do Quitexe, onde não se vê vivalma e depressa as Sanzalas do Canzenza, Aldeia, Catenda e Quimucanda vão ficando para trás. Perto do Catulo, já dentro da fazenda do Mesecano, um grupo de pessoal contratado capina o café junto à berma da estrada. Logo avisto o capataz branco fazendo-me sinal para parar. Feitos os cumprimentos “ Bom dia Patrício!”, o capataz diz-me que ouviu na rádio, antes de vir para a tonga, que em Luanda havia uma revolta de pretos e que constava que também havia brancos envolvidos nessa intentona. Agradeci a informação e lá prossegui com o sentimento de que a tragédia para os brancos (Portugueses), à semelhança do Congo Belga, se aproximava. Seria verdade que havia brancos metidos nessa intentona? Seria verdade que brancos e pretos resolviam dar o grito do Ipiranga e juntos iam proclamar a Nação Angolana? Seria bom demais para ser verdade pois até eu, que sempre tive um relacionamento de amizade com todos os pretos (africanos das sanzalas da área do Posto do Quitexe) já sentia não ser procurado tão assiduamente para ajudar a resolver problemas junto das autoridades administrativas. Era notório que algo de novo estava na forja e que nada teria a haver com os interesses dos brancos. Os indígenas, que tantos anos esperaram pelo direito à cidadania na sua própria terra, fartos da prepotência das autoridades administrativas, da palmatória e do chicote seriam terreno fértil para a sementeira de ódios recalcados.

 De Luanda as notícias são confusas: falam da morte de nove polícias brancos que guardavam a Prisão de S. Paulo, falam de um número muito grande de africanos mortos como represália e, também, de um carro da embaixada americana atirado para a Baía de Luanda.

 Estamos ainda na época das chuvas que, quanto mais intensas, mais beneficiam uma boa floração do café. Os dias são todos iguais nesta época: é preciso capinar todo o cafezal  dado que as ervas crescem rapidamente pois o calor intenso e a farta humidade no solo não dão tréguas ao pessoal. Cada contratado capina diariamente 120 pés de café. Entretanto a cerâmica, onde trabalhava o Alcindo com uma dezena de contratados do sul,  vai fabricando o tijolo que vai secando nos grandes barracões cobertos a alumínio. É depois empilhado num forno rudimentar, e o Quinherre e o José Heitor  revezam-se na manutenção do fogo feito através de troncos de árvores. Ao lado da cerâmica foi criada uma serração em que grandes troncos de Amoreiras, Quitibas e Quibabas, arrastadas por um tractor de esteiras, vão sendo colocadas num charriow  onde a serra circular as vai transformar em largas pranchas ou tábuas que depois rumam a Luanda.

 Este é o cenário que dia a dia se vive na Roça Quimbanze onde eu, a Aline e os filhos (Paula, Adriana, Joãozito e o Tó-Zé, entretanto regressado de Portugal onde tinha ido aprender o ABC), o Alcindo, a Laura e a filha Constança e, também o Tavares e a Dona Maria constituíamos o agregado  branco da fazenda.

 Junto às nossas casas, os armazéns do café e a casa das máquinas de descasque constituem o sector laboral. No acampamento, situado no morro em frente, junto à mata, vivem os contratados do Sul, em número variado conforme a época do ano: entre 60, no tempo das chuvas e 100, na época  do cacimbo, altura da colheita do café. Entretanto tinha sido inaugurada no Quitexe uma escola primária tornando possível ter junto de nós os filhos em idade escolar. Assim, e alternadamente, eu e o meu vizinho Armindo Lenita (com dois filhos)  íamos ao Quitexe levar ou trazer a miudagem .

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Quimbanze às 23:43

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Sábado, 26 de Maio de 2007

Quitexe - Uma Tragédia Anunciada

            

       

   

         PREFÁCIO

 

Neste livro de recordações, com uma linguagem simples, mas fluente e cativante, o autor transporta-nos através do tempo, relatando episódios que influenciaram de forma indelével a história de Angola.

 

Recorrendo-se da memória extraordinária sobre factos, pessoas e lugares que marcaram a sua vida há mais de 40 anos, somos obrigados a envolvermo-nos nesses dias de tragédia para portugueses e angolanos.

 

Começando o seu relato nesse longínquo 4 de Fevereiro de 61, vai, depois, descrevendo os dias, qual diário ditado de memória, até Julho desse ano, quando regressa a Portugal.

 

Vão passando, diante dos nossos olhos, o sofrimento, a angústia, a morte, o terror e, também, sobretudo, o carácter de um homem que tem a coragem de dizer não! Não à barbárie, não à vingança, não à violência! Um homem que tem horror à guerra, mas que é nela envolvido. Não foge, mas mantém os valores de respeito pela dignidade humana que sempre o nortearam.

 

Com uma profunda amizade e respeito pelos povos do Quitexe, vai ainda mais fundo no baú das recordações e carreia episódios ou apenas relatos do quotidiano que nos levam a compreender (não a justificar) o horror vivido naquela madrugada de 15 de Março.

 

Mas não cai na tentação, porque a viveu, de pintar a colonização de Angola a preto e branco, assumindo complexos de culpa por uma acção que teve, também, muito de meritório. Aqui estão os relatos das privações, do isolamento, das doenças e das mortes nos primeiros anos de vida naquelas terras. Hoje só é possível compreender esta acção colonizadora se atentarmos nas ainda mais duras condições de vida a que a generalidade do povo português estava sujeito na sua pátria.

 Surgem, então, as contradições de quem assume a colonização, não com o chicote e a palmatória, mas inserida no contexto histórico da época. Consciente, também dos erros e crimes dessa colonização, tem a noção de que, depois de tantos sacrifícios os povos angolano e português poderiam e deveriam ter tido outro destino que não a guerra fratricida, deixando em escombros uma obra que os unia no melhor e no pior.

Agradeço, pois, ao meu Pai este livro, pelo reencontro que me proporcionou com a terra que me viu nascer, pelo prazer que me deu e pelo orgulho que senti ao lê-lo e pelo exemplo dado às novas gerações de que os valores da dignidade, da exaltação da vida, da amizade e da solidariedade são universais, eternos e compensadores.

 

Obrigado!

 

João Luís  Matos Garcia

 

publicado por Quimbanze às 22:55

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