Da casa avistamos a estrada que, vinda do Uíge(2) ou do Quitexe, dá acesso à fazenda continuando depois para S. José do Encoje e Ambuíla, percorrendo dezenas e dezenas de quilómetros entre a serra do Cananga, de um lado, e as serras do Quimbinda e do Mongage do outro. Vimos, então, um jipe que parece vir apressado. Virá para aqui ou seguirá para as fazendas mais afastadas? Afinal vinha para aqui. Quem seria? Era o Chefe do Posto Nascimento Rodrigues ao volante. No banco traseiro o Abílio Guerra e o Jaime Rei. Eram afinal os três membros da Junta Local. Muito preocupados, o Chefe do Posto chamou-me de lado e disse-me que de noite tinha havido sarilho na fazenda do Zalala e que o gerente tinha conseguido fugir e ir para o Uíge chamar a tropa e que constava que muitos pretos haviam fugido da fazenda. Se entretanto aparecessem por aqui devia prendê-los. – “Chefe, eu prendê-los como?”A resposta foi dizerem-me que iam ver o que se estava a passar nas fazendas e que depois voltavam a passar por cá. Lá partiram e eu desloquei-me para o Quitexe passando pela sanzala Talambanza onde iria buscar o carpinteiro Jorge Panzo. A sanzala, que ficava no cruzamento da estrada para o Uíge com a da fazenda, estava deserta. Nem Jorge, nem meio Jorge! Mas um capita vem apressado dizer-me:
- Não vá para o Quitexe pois há por lá muitos mortos! O Dr. “Talambaza” (Almeida Santos) acaba de passar para tentar chegar ao Uíge e trazer a polícia!
De imediato dou meia volta ao jipe e corro a grande velocidade para casa passando pela fazenda do Armindo Lenita onde ele, a mulher e os dois filhos podem correr perigo. Chegado à fazenda chamo a Aline e digo-lhe para preparar cobertores pois podemos ter necessidade de fugir para a mata.
Chamo o cozinheiro do pessoal e entrego-lhe um bilhete para levar rapidamente ao Tavares. Sem pormenores, escrevo-lhe a dizer para deixar o pessoal e vir imediatamente. Chamo também o Augusto para ir à Cerâmica e trazer o Alcindo:
– Que deixe tudo e venha já!
De volta o Chefe do Posto, o Abílio Guerra e o Jaime Rei vêm horrorizados dizendo que há mortos nas fazendas. Eu tenho que lhes dizer que no Quitexe também há mortos; os três tinham lá deixado as mulheres e os filhos e lá partiram, como loucos, sem saberem o que iriam encontrar.
As mulheres e os miúdos estão reunidos em minha casa. Entretanto chega uma carrinha com o guarda-fiscal mais um soldado, armados de metralhadoras. Vêm para nos buscar rapidamente. Disse-lhe que não abandonava a fazenda enquanto os meus empregados, o Alcindo e o Tavares não chegassem. Ele estava com pressa e partiu.
Agora é o Antunes, o homem do talho, que aparece com a Dona Alice e os dois filhos a abrigar-se na fazenda. Entretanto o Alcindo e o Tavares chegaram e era a altura de decidirmos o que fazer... O Tavares manda chamar os cozinheiros e damos-lhes ordens para que todo o pessoal regresse ao acampamento. Foi-lhes entregue a ração para três dias: fuba, peixe seco, óleo de palma e feijão. Ninguém ia trabalhar e ficavam de guarda à fazenda. Nós tínhamos resolvido aproximarmo-nos do Quitexe parando na fazenda do Armindo Lenita. De lá avistávamos a estrada que liga o Uíge ao Quitexe. Dentro de pouco tempo vimos que dois carros circulavam no sentido do Quitexe que ficava a uns três quilómetros. Resolvemos avançar, também, e entrar na povoação onde alguns cadáveres estavam ainda na berma das ruas. Tento desviar o olhar dos miúdos da tragédia, mas não o consegui totalmente pois na noite seguinte a minha Adrianita, com sete anos não conseguia dormir, recordando a visão dos mortos e, muito agarrada à Mãe, perguntando o que se estava a passar.
Ao Quitexe começam a afluir as mulheres e crianças brancas de todas as fazendas. Ninguém sabe se será seguro permanecerem lá sozinhas ou, sequer, como vai evoluir a situação. Na parte da tarde vem uma camioneta do Uíge para evacuar as mulheres e crianças para o hotel do Uíge. Mas consta que esta cidade será atacada por milhares de pretos nessa noite (de 15 para 16). Decido que o meu dever acima de tudo é defender a família e deixo o Quitexe rumo ao Uíge. Os rumores do ataque da UPA são cada vez mais persistentes. As ruas estão desertas e na rua principal apenas um civil, que deve ser da Pide, patrulha, rua abaixo, rua acima, com uma pistola-metralhadora e cartucheiras cheias de balas. No hotel a confusão e ansiedade pelo que pode acontecer é grande. Não há ninguém para defender o hotel. Um redactor do Jornal do Uíge, lá hospedado, apercebe-se do drama e telefona para o quartel da tropa relatando a situação em que se encontravam dezenas e dezenas de mulheres e crianças, totalmente desamparadas e sem protecção. A resposta foi pronta:
- Desenrasquem-se como puderem pois em caso de ataque nem tenho tropa suficiente para defender o paiol!
Eu tinha comigo uma pistola 365 com 10 balas; eu que na minha vida só tinha disparado ao alvo armas de pressão de ar! E se fosse preciso abrir fogo?...
A situação era aflitiva pois os homens tinham ficado no Quitexe. Esgotada a possibilidade de defesa, vou à loja do Ferreira Lima buscar uma dezena de catanas que distribuo pelos quartos. Com os poucos homens organiza-se uma defesa simbólica com duas pistolitas e duas catanas. Três pessoas ficam na porta principal. Eu fui para as traseiras defender a porta de acesso às instalações. A noite vai avançando. Atacarão, não atacarão? O silêncio é aterrador. Vão chegando informações contraditórias: já estão a atacar! Já há mortos! Serão boatos? A avenida está silenciosa, apenas o pide continua a andar para cima e para baixo. Agora chega a informação que o ataque vai começar à meia-noite. Cresce a ansiedade. Nada é dito para os quartos, agora fechados, onde as mulheres, em caso de ataque apenas têm as catanas para se defenderem. A meia-noite aproxima-se e então começo a ver e ouvir vultos que se aproximam, subindo a rua das traseiras do hotel.
– MATA! MATA! UPA! UPA!
Do lugar onde estou vejo passar a turba, mas não há nenhum sinal de quererem atacar o hotel. Também já passaram junto ao quartel da Polícia e do Palácio do Governador e só se ouve o – MATA! MATA! UPA! UPA! Não há tiros. Só mais tarde para os lados do Bairro Montanha Pinto começa grande tiroteio que vai diminuindo conforme a noite avança. Corre a notícia de que, afinal, as grandes sanzalas em redor do Uíge não colaboraram no ataque. O grupo que avançou era o que havia passado nas traseiras do hotel e foi disperso.
O Laurindo que era filho do velho Mainga, velho amigo que eu muito respeitava, dava a ideia de que teria alguma coisa para me dizer. Falou dos Velhos do Ambuíla, do pai, do Velho Mafuta, do Velho Lussecala e outros que gostavam muito de mim, do patrão “Gracia”, que era bom branco. O Laurindo queria falar mas eu, que estava com pressa, fui-lhe dizendo que estava atrasado e que tinha pessoal à espera para carregar a camioneta. Entretanto aparece a Aline e o Laurindo cumprimenta-a muito respeitosamente.
A sanzala do Laurindo, o Ambuíla, ficava no limite da minha fazenda, a escassos dois mil metros. Com todos os habitantes dessa sanzala eu tinha boas relações, éramos bons vizinhos. Depois de beber um copo de vinho e aceitar um cigarro o Laurindo lá partiu sem falar com o Augusto. E, ainda hoje, eu penso que ele seria portador de alguma mensagem dos velhos em relação ao que viria a acontecer no dia seguinte.
À semelhança de todos os dias, antes do deitar, tentei ouvir a Radio Brazaville mas, nessa noite não consegui. E assim terminou o dia 14 de Março de 1961.
Por volta dos anos 55/56 o preço do café atinge preços elevados; a economia floresce e os indígenas, ao vender o seu café nas povoações comerciais regressam a casa com bens de consumo que nunca pensaram adquirir. Os quimonos e as tangas dão lugar aos vestidos, os panos que envolvem os mais velhos são, em parte, substituídos por calções e roupa dos soldados americanos e ingleses, desde simples blusões de soldados a casacos de oficiais e, às vezes até de generais. Estas fardas vinham da América em fardos de cem peças e eram vendidas muito baratas. Até os brancos as vestiam, principalmente os blusões de cor esverdeada dos soldados ingleses. Os tachos de alumínio substituíam os tachos e panelas de barro. Também aqui e ali os quedes de borracha protegem os pés descalços, e já se vêm bicicletas, máquinas de costura Singer, milongas (remédios), brincos e missangas. Tudo o que seja novo se vende. Há um grande desejo de avançar, de criar uma vivência mais confortável. Até a língua portuguesa começa a sobrepor-se ao Quimbundo; já não há miúdo nenhum que não fale a nossa língua, ou porque nas missões o seu ensino é agora mais intenso, ou porque o relacionamento com os comerciantes é cada vez mais forte.
Alguns indígenas, já produtores de grandes quantidades de café, começam a manifestar o desejo de adquirir o direito à cidadania portuguesa e fugir ao estatuto do indigenato que era, ainda, uma reminiscência da velha escravatura.
A aquisição da cidadania era formalizada com a posse do Alvará de Assimilação. Enquanto os brancos, para obterem o Bilhete de Identidade, apenas precisavam duma certidão de nascimento, duas fotografias e uns dias de espera, para os negros era um nunca mais acabar de exigências:
- Tinham que ser católicos (quando nesta região os povos eram quase todos protestantes);
- Só podiam ter uma mulher;
- Deviam possuir uma casa com cobertura de zinco ou alumínio.
- Tinham que falar português.
Eram as condições que as autoridades administrativas impunham e que podiam ser certificadas por comerciantes. Ainda certifiquei uma meia dúzia de casos, pelo conhecimento pessoal que tinha das pessoas, pois, tirando a questão religiosa, tudo o resto era verdadeiro.
Mas, como no passado, desde o reino à república, as leis são aprovadas em Lisboa, mas os governos coloniais das províncias não só não as cumprem como não as mandam cumprir, perpetuando uma escravatura, onde os direitos são só aqueles que cada autoridade administrativa, segundo a sua bondade, permite. O abuso é tal que qualquer branco se julga no direito de fazer justiça por conta própria.
Vem tudo isto a propósito do Alvará de Assimilação. Certificada a pretensão era entregue na Administração ou no Posto Administrativo; Em qualquer dos dois lados o destino era o mesmo – o cesto dos papeis. Fartos de esperar acabam por desistir, pois a resposta era sempre a mesma:
- Ainda não há nada!
Alguns, entretanto, vão tentar a sorte a Luanda e, possivelmente a troco de uns angolares, lá arranjam o tão desejado alvará. Quando voltam às suas terras, orgulhosos porque finalmente são homens com direitos, vão, como tal, apresentar- se às autoridades exibindo o símbolo do sonho agora realizado. O Chefe do Posto analisa o alvará e vê que foi tirado em Luanda. Sendo ele natural deste posto não podia ser emitido sem prévia informação da autoridade local. O Chefe do Posto (1) chama o cipaio e manda dar uma carga de porrada e vinte palmatoadas em cada mão dizendo:
-Aqui quem manda sou eu e, enquanto for autoridade, nenhum filho da puta de preto queira ser português como eu!
É neste correr do dia a dia que numa das minhas idas ao Quitexe encontro o Chefe do Posto Nascimento Rodrigues que diz precisar de falar comigo, confidencialmente. Combinámos almoçar no domingo seguinte na minha fazenda. Digo-lhe para também levar a mulher (Raquel) e os filhos.
Assim foi e, assim, tomei conhecimento da confidência. Ele, Chefe do Posto, tinha sido alertado pela PIDE que estavam a ser distribuídos panfletos subversivos nas sanzalas para os lados do Zalala e que esses panfletos eram de uma organização política designada por U.P.A. que significava União dos Povos de Angola. Fiquei surpreendido, pois nunca tinha ouvido tal designação. O Chefe esclareceu que estava a contactar todos os fazendeiros para colaborarem com a Pide dando-lhe todas as informações que fossem colhendo. Respondi-lhe que de tudo que eu viesse a saber lhe daria conhecimento a ele e não à Pide, visto ser organização que sempre repudiei. Esta conversa teve lugar no dia 5 de Março de 61.
Entretanto as férias escolares haviam começado e, por isso, não era necessário levar os miúdos ao Quitexe.
No dia 10, escrevo uma carta à Tia Marquinhas, carta essa que mais tarde recuperei e que agora transcrevo:
(...) Desculpe a Tia o só hoje dar notícias mas como deve calcular estas vidas, primeiro a baixa do café que atingiu um preço que pôs toda esta região à (beira da) falência e agora surge o inevitável problema político, para o qual os governantes resolveram solucioná-lo pela força. Seremos nós, os do interior, homens, mulheres e crianças as principais vítimas, pois além de nos encontrarmos indefesos, por mil e uma razões não podemos abandonar esta boa mas também maldita terra. Em Luanda parece que os encontros têm sido renhidos e que já houve centenas de mortes, mas mesmo lá, por enquanto, parece que os ataques são só dirigidos contra a polícia e o exército e que das forças revoltadas fazem parte brancos. Seria uma sorte pois, se vamos para a questão racial será uma desgraça, pois será o caso de mata que é branco e mata que é preto. Mas parece-me que não teremos sorte pois esses cavalheiros daí para salvarem a pele não hesitarão em nos sacrificarem. (...)
Relendo agora a carta, quase me surpreendo com a clarividência com que expus a situação política vivida em Angola, bem como o alerta premonitório para o que se passaria cinco dias depois.
No dia treze o Alcindo, na cerâmica, dá ordem aos forneiros para começar a cozedura do tijolo e, a partir daí, durante três dias e três noites as três bocas do forno vão engolindo e queimando as muitas carradas de lenha que hão-de levar ao rubro os tijolos. Nesta altura, é dada por concluída a cozedura, seguindo-se depois o arrefecimento do forno e a desenforma.
. O ataque à sanzala do Amb...
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