Terça-feira, 23 de Outubro de 2007

A repressão

Após o ataque ao Quitexe as populações das grandes sanzalas como o Catulo, Dambi Angola, Ambuíla e o Quitoque permaneceram nelas, pacificamente. Os carros circulavam no seu interior, sem qualquer hostilidade. Há como que uma pausa para avaliar a situação pois creio que, embora todos os pretos estejam ao corrente do que se passa , inicialmente, só uma pequena parte terá aderido à UPA e ao ataque ao Quitexe e às fazendas. A UPA só conseguiu alguns êxitos no primeiro dia dada a surpresa, pois se estivessem as fazendas alertadas, tudo tinha sido diferente. As autoridades estavam, afinal, a par do que iria acontecer, dia e hora, como posteriormente se veio a saber. Porque não alertaram as fazendas e as povoações da iminência do ataque? Porque deixaram morrer tantos brancos, mulheres e crianças sem saberem por que estavam a ser esquartejados à catanada?

 

         A UPA, à semelhança do que se passou no Congo Belga, confiou que os brancos, cheios de medo, abandonassem em fuga as suas terras, o que, por pouco não conseguiu. Só, talvez a presença  de largos milhares de contratados do Sul, agora todos classificados de Bailundos o terá evitado. Só na área do Posto do Quitexe haverá quatro ou cinco vezes mais Bailundos que toda a população local africana. Por variadas razões estão totalmente ao nosso lado e, assim evitam que a actividade cafeícula  paralise. E foi, graças ao valor económico do café e à permanência dos Bailundos nesta região, que a maioria das fazendas, entregues a gerentes e empregados brancos conseguiu manter-se em laboração. Estes, à noite, ainda ajudavam na defesa do Quitexe. Os comerciantes abalaram para Luanda; sem os povos das sanzalas nada mais os prendia aqui: não havia a quem vender, nem a quem comprar.

 A repressão que se segue é brutal. Não se procura uma alternativa. Entretanto, eu e o Martins Gonçalves propomos tentar entrar em contacto com as sanzalas, mas a nossa sugestão é liminarmente excluída: não havia ordem para isso.

   As sanzalas são metralhadas e incendiadas. Homens, mulheres, velhos e crianças iniciam a debandada; levam consigo os poucos haveres que conseguem reunir. O seu destino são as matas impenetráveis da Serra do Quimbinde, da Serra do Quitoque, do maciço da Serra do Cananga. Vão, quem sabe, à procura dos lugares dos seus antepassados, de onde, um dia, foram obrigados a sair, pela força, para se fixarem junto às estradas que correm no sopé das serras e dão acesso aos Postos Administrativos e, agora, às povoações da população branca e às sanzalas africanas.

  A morte de todos os pretos da região, sentenciada pela Pide, braço da repressão do governo, secundada pelos agentes das autoridades administrativas e outros mais sedentos de vingança, conseguiu, em poucos dias destruir o equilíbrio simbólico que existia entre o poder das autoridades portuguesas e o poder africano do sobas.

         O bom relacionamento dos comerciantes com os povos das sanzalas era fruto de uma actividade onde os interesses mútuos se cruzavam. Para o comerciante do mato é do bom relacionamento com os nativos que depende a sua própria sobrevivência e foi este equilíbrio estável que foi irremediavelmente perdido. E, assim, de maneira pouco política e irresponsável, as autoridades portuguesas entregaram à guarda da UPA, grupo armado de assassinos  ao serviço dos interesses americanos, os povos com quem convivemos durante centenas de anos. Este convívio nem sempre foi feito da melhor maneira, mas mais por culpa das autoridades que preferiam, em vez do respeito mútuo, incutir em terra alheia a submissão e o medo, esquecendo os valores do humanismo cristão que tanto apregoavam.

         Só muito mais tarde adoptaram a política da “psico”, tentando atrair as populações africanas a aldeamentos modelo guardados pelos “flechas” e visitados pelos altos governantes, como exemplo da convivência com os povos nativos.

 

Quitexe 61 - Uma Tragédia Anunciada, João Nogueira Garcia

publicado por Quimbanze às 19:33

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Sexta-feira, 19 de Outubro de 2007

O ataque à sanzala do Ambuíla

 

Como todos os dias, a parte da manhã passava-a na fazenda, almoçando lá alguns dias, outros, vindo almoçar ao Quitexe e ficando o resto do dia na povoação. O Alcindo e o Tavares haviam ido para Luanda, não sabendo se eles voltariam ao Quitexe, pois, para além do emprego, nada já os prendia ali. Em Luanda os deslocados tinham comida e dormida assegurados pelo Estado e, quem saiu do inferno do Quitexe, já não teria vontade de voltar. Assim, nesse dia da destruição da sanzala do Ambuíla, estou só, quando alguém me diz que o pide já seguira para lá com algumas tropas e civis. Iriam passar pela roça Quimbanze, que era a minha, e levar os contratados para ajudarem ao saque.

Fiquei preocupadíssimo, pois a roça limitava com a sanzala e com todas as lavras de café, mandioca e feijão que eram a base de toda a sobrevivência daqueles povos. Quando fui autorizado a demarcar a fazenda tive o cuidado de falar com o velho Cussecala, deixando livre a mata entre a fazenda e as lavras e sempre mantive relações de cordialidade com os nativos da Sanzala. Mais tarde esses terrenos seriam demarcados para outra fazenda cujo dono viria a pagar com a vida o preço dessa ocupação.

Mas, agora, seria feito o ataque e, com certeza, a minha roça, que com tanto sacrifício conseguira desbravar e plantar, seria a primeira a ser destruída como represália pelo saque ao Ambuíla. Vou ver o que se passa e vejo um avião sobrevoar a minha fazenda. De repente lança duas bombas que explodem já nas lavras da sanzala. Sigo para lá e constato que efectivamente são os meus contratados que, à ordem da Pide, estão a colaborar no ataque. Ainda pergunto ao Aspirante Administrativo se foi ele que deu ordens para isso, mas ele diz-me:
- Não senhor, não fui eu!

Quando entro na sanzala os contratados, nem todos, vêm carregados de cobertores, panelas, bicicletas e tudo o mais que podem carregar. Entretanto o fogo vai consumindo as cubatas, restando apenas paus fumegantes. Entre os destroços surge um soldado português carregando uma máquina de costura Singer de pedais. Alguém comenta o caso e o soldado exclama:
- Há quantos anos a minha mulher me anda a pedir uma máquina destas...

Quando parece acabada a operação eis que surge uma figura envolvida em panos, de carapinha toda branca, um velho (macolundo) descendo do ponto mais alto da sanzala. Quem será? Agora, já mais perto reconheço o meu velho amigo Cussecala que continua descendo ao encontro dos brancos. O velho Cussecala, pai do Pedro, meu antigo ajudante nas carrinhas, tem atrás de si uma história muito triste. Depois de ter sido soba enlouqueceu, com períodos de perigosidade, que obrigavam a que fosse preso a um bocado de tronco de árvore. Este tinha uma forcalha na extremidade, na qual metiam o pescoço do infeliz que assim ficava imobilizado. A outra ponta do pau ou era presa à porta da cubata ou, em caso de qualquer deslocação, levantada e transportada pelo acompanhante.

Nesse fim do dia, ele descia livre, pela última vez a avenida da sua velha sanzala. Ainda grito para um soldado que, entretanto, subira para a carroçaria de uma carrinha com uma mauzer apontada ao velho:

- Não o matem! Não o matem! Ele é um doido que há muito enlouqueceu!

Do cano da espingarda uma bala parte direitinha ao crânio do Velho Cussecala. Horrorizado aproximo-me e, da cabeça esfacelada, vejo ainda à sua volta bocados de massa encefálica espalhados pelo chão.

Agora é o regresso dos heróis e eu vou para a fazenda onde começam a chegar os contratados com os despojos do saque. Alguns sem nada, outros carregados com tudo o que puderam trazer. O cabo do grupo é de todos o que mais transporta pois a bicicleta que acaba de adquirir vem
carregada. Espero que todos cheguem ao acampamento e, de seguida, dou ordem aos cabos para que formem no terreiro. Ordeno, então, para que todos os haveres que tinham sido roubados na sanzala sejam transportados para fora da fazenda pois não permito que nada roubado aqui permaneça. Têm o prazo até amanhã de manhã para o fazerem.

Parti com a sensação de que, no dia seguinte, só encontraria destroços fumegantes das casas, dos armazéns, dos acampamentos, dos tractores, enfim de tudo o que representa uma vida de trabalho e sofrimento.

Volto ao Quitexe e preparo-me para jantar, como de costume, no restaurante do Pacheco. Depois irei saber a hora para que estou escalado de guarda ao restaurante, agora transformado em dormitório e defendido toda a noite. Fazem-se turnos de uma hora , desde as 10 h da noite até às 6 da manhã. A vigia é feita no terraço que serve de pala à varanda do restaurante. Ali, durante toda a noite, dois homens, por turno, esperam de peito descoberto, o mais pequeno sinal de ataque para darem o alarme e abrirem fogo. Rara é a noite em que o alerta não soe, quase sempre vindo da Administração, onde estão alguns tropas e civis. O grito de alerta, normalmente seguido de disparos, é uma coisa terrível pois as pessoas que estão, por vezes, no primeiro sono entram em pânico. Uns correm descalços, outros em cuecas (que era o meu caso), outros tremem, outros choram, mas todos vão ocupar os seus lugares e ali ficam esperando o ataque. Passada meia hora chega-se à conclusão que, como sempre tem acontecido, é alarme falso.

Nesta noite vou estar de vigília, fazendo companhia aos companheiros que, de hora a hora, se vão revezando. Sentado num caixote na pala da varanda (de onde, de dia, se avistam os armazéns da minha fazenda) estou ali expectante, esperando que algum clarão de fogo rompa a noite como sinal do incêndio da roça. Até às seis horas da manhã nada acontece. Termina a vigia, o pessoal que dormiu na camarata improvisada começa a aparecer para tomar o café. Para mim esta terá sido a noite mais longa de todas as noites.

Vivendo ainda o sucedido no dia anterior, vou para a fazenda saber a reacção dos contratados Bailundos aos acontecimentos. Sou informado de que está tudo calmo e que a minha ordem, para que todos os utensílios roubados no Ambuíla fossem postos fora da fazenda foi cumprida. O Augusto segredou-me que eles tinham reunido todos os bens roubados e os tinham ido pôr junto à minha casa; de noite alguém os havia levado.

Não fiz mais perguntas, mas calculo que os seus donos os vieram reaver, levando-os para as matas, onde agora se escondiam.

publicado por Quimbanze às 21:45

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