Sábado, 14 de Julho de 2007

Dia 17

Dia 17

O Governo ordena uma ponte aérea e começa a evacuação das mulheres e crianças do norte de Angola. E eu regresso ao Quitexe preocupado com o que se terá passado na fazenda e com a atitude que tenho que tomar perante a ameaça à minha vida por parte dos brancos. Tinha que ser duro.

 

            No percurso, perto da fazenda do Matos Vaz um casal de nativos, ela com um bebé atado às costas, caminha pela berma da estrada. De uma carrinha alguém dispara e mata o casal. Eu, que vou noutra carrinha, mais atrás, vejo horrorizado o bebé rastejando por cima do corpo da mãe já morta. O motorista não para e ninguém grita... A morte sobrepõe-se à vida!

Oh maldição do tempo em que vivemos! Onde está Deus que não vê isto?

 

            O Quitexe está cheio de gente que, vinda dos Dembos, das povoações e das fazendas ali procurava abrigo. A carrinha parou junto a um aglomerado de comerciantes do Quitexe. Então exclamei:

 

-         Eu não fugi e, por isso, aqui estou! Vocês preferiram mandar as mulheres e os filhos para o Uíge sem a preocupação de saberem quem as defenderia, no caso do ataque anunciado ao Uíge. Fui eu e um jornalista do Jornal do Uíge que organizámos a defesa do hotel! Foi com catanas, que fui buscar à loja do Ferreira Lima, que as mulheres se barricaram nos quartos! Arranjamos um avião que levou para lugar seguro a minha e as vossas famílias! Estou muito zangado. Para mim a defesa da família é um direito primário, mas sagrado e, agora que ela está em lugar seguro, vamos ver quem está para ficar!

 

Cabeças baixas engoliram em seco.

 

            Na fazenda, o ataque tinha-se resumido a um grupo do Ambuíla, que queria tomar conta da roça. Formaram o pessoal e disseram que, de agora em diante, eles é que mandavam pois os brancos ou foram mortos ou fugiram. No dia seguinte, logo de manhã, volto à fazenda e o grupo do Ambuíla lá estava para começar a dar ordens. Então, um contratado avista o jipe  e diz:

-         Lá vem o patrão Garcia!

 

Os ocupantes, logo que o ouviram, começaram a fugir pelo meio do capim para eu não os reconhecer.

 

A noite de 17 para 18 é passada na casa do Chefe do Posto entretanto transformada na fortificação principal. Um grupo de 9 soldados africanos, 2 cabos e um tenente brancos das forças territoriais vêm em nossa defesa. Três metralhadoras pesadas Brem são colocadas na retaguarda  da casa prontas a defenderem o depósito da água e o gerador da electricidade e “varrerem” o capinzal que cerca a povoação, em caso de ataque. Só o Chefe do Posto, o Tenente e o Médico (Dr. Assoreira)  têm quarto para descansarem, naqueles dias. Os soldados e os civis, deitados no chão, embrulhados num cobertor, esperam, dormindo acordados, que a manhã afaste o medo da noite. Os soldados africanos revezam-se dia e noite agarrados às metralhadoras. Parecem nunca terem sono, disciplinados. São homens do Sul, talvez Cuanhamas, soldados de confiança.

 

            De Luanda recebo a notícia de que a Aline e os filhos seguiram para Portugal; fiquei surpreendido pois a situação talvez não exigisse uma partida tão rápida, mas o meu irmão Alfredo aproveitou a vinda de um avião a Luanda com tropas pára-quedistas, levando de regresso passageiros.

 

            Foi a primeira separação. Conformado e sabendo que seriam bem recebidos no seio da família, lá vou doravante transportar sozinho uma pesada cruz. Todos os dias vou à fazenda e por lá permaneço algumas horas. Uma parte dos bailundos vai de manhã para a capina do café, enquanto outros, vigilantes, guardam a fazenda.

 

 O Quitexe, onde nos primeiros dias se juntou muita gente, vai ficando cada vez menos ocupado. Com diversos argumentos , entre os quais irem ver as mulheres e os filhos a Luanda os homens também vão saindo. Mas a vigilância aumenta, temendo-se novo ataque.

 

Hoje, no jipe a caminho da fazenda com o Alcindo, sou surpreendido por um grupo de uns 50 pretos no meio da estrada. Por cautela parei a uma distância de cerca de 20 metros e perguntei:

 

-         Quem são e donde vêm?

 

Só autorizei que um dos miúdos, integrado no grupo avançasse, trazendo nas mãos uns papéis. Sempre de pistola na mão vejo os papéis e verifico que é uma guia de marcha de contratados do sul da fazenda Vieira de Matos situada a uns 30Km do Quitexe. Fugiram porque o gerente e os outros brancos os abandonaram.  Perante a situação digo-lhes para saírem da estrada e acamparem no capim.

 

 - Vou à minha fazenda, ali em frente e quando voltar para o Quitexe apresento a vossa situação às autoridades. Não saiam daqui! 

De volta lá estavam e eu prometi-lhes, de novo, trazer notícias. Chegado ao Quitexe exponho a situação ao Comando Civil e Militar. De imediato me respondem:

 

- Nenhum grupo de pretos se pode aproximar da povoação. Se o fizerem serão mortos.

- Então o que vamos fazer com eles?

- Faça como puder, mas aqui não entram!

Sugeri que, se eles autorizassem, os levava para a fazenda.

-         Se assume a responsabilidade pode fazê-lo.

 

Assim fiquei com mais cinquenta e tal pessoas para alimentar. Durante três meses ninguém procurou saber se os homens eram vivos ou mortos!

 

Agora, sem o Tavares nem o Alcindo que foram para Luanda ver as  famílias, encontro-me sozinho. Tento encontrar alguém que vá comigo à fazenda. Quando isso acontece, lá comemos um churrasco feito pelo cozinheiro. Outros dias há que vou sozinho. Fui escalado para dia sim, dia não, com outros colonos, patrulharmos as ruas do Quitexe; das dez horas da noite até às seis da manhã em cima de uma camioneta. Em caso de ataque seríamos as primeiras vítimas.

 

Ter como missão defender, de dia, as fazendas e, à noite, fazer guarda e dormir (quando é o caso) em improvisadas camas é doloroso; mas um homem acaba por sobreviver a tudo (menos à morte). Os constantes boatos lançados diariamente – hoje atacam ali; há mortos em tal parte; consta que há concentração de turras para atacar o Quitexe – criam uma situação de inquietação permanente.

publicado por Quimbanze às 16:03

link do post | comentar | favorito

.outras páginas

.posts recentes

. O Kipombo

. A repressão

. O ataque à sanzala do Amb...

. A PIDE

. GENERAL HUMBERTO DELGADO

. Detido pela Pide

. Dia 17

. Dia 16

. DIA 15

. Dia 14

.arquivos

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

.Novembro 2007

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.pesquisar

 
blogs SAPO

.subscrever feeds