Sexta-feira, 19 de Outubro de 2007

O ataque à sanzala do Ambuíla

 

Como todos os dias, a parte da manhã passava-a na fazenda, almoçando lá alguns dias, outros, vindo almoçar ao Quitexe e ficando o resto do dia na povoação. O Alcindo e o Tavares haviam ido para Luanda, não sabendo se eles voltariam ao Quitexe, pois, para além do emprego, nada já os prendia ali. Em Luanda os deslocados tinham comida e dormida assegurados pelo Estado e, quem saiu do inferno do Quitexe, já não teria vontade de voltar. Assim, nesse dia da destruição da sanzala do Ambuíla, estou só, quando alguém me diz que o pide já seguira para lá com algumas tropas e civis. Iriam passar pela roça Quimbanze, que era a minha, e levar os contratados para ajudarem ao saque.

Fiquei preocupadíssimo, pois a roça limitava com a sanzala e com todas as lavras de café, mandioca e feijão que eram a base de toda a sobrevivência daqueles povos. Quando fui autorizado a demarcar a fazenda tive o cuidado de falar com o velho Cussecala, deixando livre a mata entre a fazenda e as lavras e sempre mantive relações de cordialidade com os nativos da Sanzala. Mais tarde esses terrenos seriam demarcados para outra fazenda cujo dono viria a pagar com a vida o preço dessa ocupação.

Mas, agora, seria feito o ataque e, com certeza, a minha roça, que com tanto sacrifício conseguira desbravar e plantar, seria a primeira a ser destruída como represália pelo saque ao Ambuíla. Vou ver o que se passa e vejo um avião sobrevoar a minha fazenda. De repente lança duas bombas que explodem já nas lavras da sanzala. Sigo para lá e constato que efectivamente são os meus contratados que, à ordem da Pide, estão a colaborar no ataque. Ainda pergunto ao Aspirante Administrativo se foi ele que deu ordens para isso, mas ele diz-me:
- Não senhor, não fui eu!

Quando entro na sanzala os contratados, nem todos, vêm carregados de cobertores, panelas, bicicletas e tudo o mais que podem carregar. Entretanto o fogo vai consumindo as cubatas, restando apenas paus fumegantes. Entre os destroços surge um soldado português carregando uma máquina de costura Singer de pedais. Alguém comenta o caso e o soldado exclama:
- Há quantos anos a minha mulher me anda a pedir uma máquina destas...

Quando parece acabada a operação eis que surge uma figura envolvida em panos, de carapinha toda branca, um velho (macolundo) descendo do ponto mais alto da sanzala. Quem será? Agora, já mais perto reconheço o meu velho amigo Cussecala que continua descendo ao encontro dos brancos. O velho Cussecala, pai do Pedro, meu antigo ajudante nas carrinhas, tem atrás de si uma história muito triste. Depois de ter sido soba enlouqueceu, com períodos de perigosidade, que obrigavam a que fosse preso a um bocado de tronco de árvore. Este tinha uma forcalha na extremidade, na qual metiam o pescoço do infeliz que assim ficava imobilizado. A outra ponta do pau ou era presa à porta da cubata ou, em caso de qualquer deslocação, levantada e transportada pelo acompanhante.

Nesse fim do dia, ele descia livre, pela última vez a avenida da sua velha sanzala. Ainda grito para um soldado que, entretanto, subira para a carroçaria de uma carrinha com uma mauzer apontada ao velho:

- Não o matem! Não o matem! Ele é um doido que há muito enlouqueceu!

Do cano da espingarda uma bala parte direitinha ao crânio do Velho Cussecala. Horrorizado aproximo-me e, da cabeça esfacelada, vejo ainda à sua volta bocados de massa encefálica espalhados pelo chão.

Agora é o regresso dos heróis e eu vou para a fazenda onde começam a chegar os contratados com os despojos do saque. Alguns sem nada, outros carregados com tudo o que puderam trazer. O cabo do grupo é de todos o que mais transporta pois a bicicleta que acaba de adquirir vem
carregada. Espero que todos cheguem ao acampamento e, de seguida, dou ordem aos cabos para que formem no terreiro. Ordeno, então, para que todos os haveres que tinham sido roubados na sanzala sejam transportados para fora da fazenda pois não permito que nada roubado aqui permaneça. Têm o prazo até amanhã de manhã para o fazerem.

Parti com a sensação de que, no dia seguinte, só encontraria destroços fumegantes das casas, dos armazéns, dos acampamentos, dos tractores, enfim de tudo o que representa uma vida de trabalho e sofrimento.

Volto ao Quitexe e preparo-me para jantar, como de costume, no restaurante do Pacheco. Depois irei saber a hora para que estou escalado de guarda ao restaurante, agora transformado em dormitório e defendido toda a noite. Fazem-se turnos de uma hora , desde as 10 h da noite até às 6 da manhã. A vigia é feita no terraço que serve de pala à varanda do restaurante. Ali, durante toda a noite, dois homens, por turno, esperam de peito descoberto, o mais pequeno sinal de ataque para darem o alarme e abrirem fogo. Rara é a noite em que o alerta não soe, quase sempre vindo da Administração, onde estão alguns tropas e civis. O grito de alerta, normalmente seguido de disparos, é uma coisa terrível pois as pessoas que estão, por vezes, no primeiro sono entram em pânico. Uns correm descalços, outros em cuecas (que era o meu caso), outros tremem, outros choram, mas todos vão ocupar os seus lugares e ali ficam esperando o ataque. Passada meia hora chega-se à conclusão que, como sempre tem acontecido, é alarme falso.

Nesta noite vou estar de vigília, fazendo companhia aos companheiros que, de hora a hora, se vão revezando. Sentado num caixote na pala da varanda (de onde, de dia, se avistam os armazéns da minha fazenda) estou ali expectante, esperando que algum clarão de fogo rompa a noite como sinal do incêndio da roça. Até às seis horas da manhã nada acontece. Termina a vigia, o pessoal que dormiu na camarata improvisada começa a aparecer para tomar o café. Para mim esta terá sido a noite mais longa de todas as noites.

Vivendo ainda o sucedido no dia anterior, vou para a fazenda saber a reacção dos contratados Bailundos aos acontecimentos. Sou informado de que está tudo calmo e que a minha ordem, para que todos os utensílios roubados no Ambuíla fossem postos fora da fazenda foi cumprida. O Augusto segredou-me que eles tinham reunido todos os bens roubados e os tinham ido pôr junto à minha casa; de noite alguém os havia levado.

Não fiz mais perguntas, mas calculo que os seus donos os vieram reaver, levando-os para as matas, onde agora se escondiam.

publicado por Quimbanze às 21:45

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